ALGUMAS CARACTERÍSTICAS
Toda a gente se recordará do que disse Fukuyama depois da queda do Muro e da desagregação da União Soviética: esperava-nos o fim da história e uma nova época, unipolar, dominada por uma grande potência, sem os conflitos do passado. Simultaneamente, adquiriu novo elan o movimentos neoliberal, sinteticamente teorizado pelo chamado Consenso de Washington (1989), que tinha começado a manifestar-se com intensidade nos primórdios de 80 e que haveria de influenciar decisivamente toda a história mundial das últimas três décadas.
Para quem participava frequentemente em reuniões internacionais, como aconteceu com muitos portugueses, em consequência da adesão, em 1986, de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, a intensidade e a natureza daquele movimento eram particularmente notadas, não apenas pela novidade do que ele representava relativamente ao modo de pensar ainda vigente na maior parte dos países, mas também pela tenacidade com que as novas ideias iam sendo postas em prática em todos os domínios da vida comunitária, impulsionadas pela acção “militante” de países como o Reino Unido, sempre apoiado pela Holanda, a Bélgica, a Dinamarca e pela passividade expectante ou relativa aquiescência dos demais.
Não interessa agora fazer a história da conversão da Europa ao neoliberalismo, que é uma história longa e multifacetada, nem a instrumentalização que simultaneamente se fez do conceito de direitos humanos, arvorando-o em bandeira da nova doutrina, mediante uma redução do seu alcance e conteúdo, para mais facilmente impor a nova ordem económica.
Interessa apenas sublinhar um aspecto da questão, que com o tempo se veio a tornar relevantíssimo. Refiro-me ao modo como o neoliberalismo encarou o Estado, em todo o lado, mas principalmente nos países em desenvolvimento. De facto, foi nas relações com os países em desenvolvimento que os guardiões da nova ortodoxia (Departamento de Estado, Departamento do Tesouro dos EUA, FMI e BM) e seus fiéis sequazes (bancos regionais de desenvolvimento, Comunidade Económica Europeia) mais à vontade se sentiram para impor sem restrições e com a arrogância típica dos conquistadores o novo entendimento do conceito de Estado.
Nada os impediu ou os deteve na caminhada que se afigurava gloriosa, já que com a consagração vitoriosa da doutrina oficial, todos os instrumentos de ajuda ao desenvolvimento se alteraram, mesmo aqueles que estavam consagrados em tratados, como era o caso da ajuda prestada pela então CEE aos países de África, Pacífico e Caraíbas (Lomé), da Ásia e da América Latina. Gradualmente, mas sem vacilações, todos esses instrumentos foram sendo renegociados, com mais ou menos coacção, de modo a que neles se albergasse o essencial do Consenso de Washington. Simultaneamente, as instituições de Bretton Woods, que actuavam por via de verdadeiros diktats, impunham a esses mesmos países as políticas que eles teriam de passar a adoptar para que pudessem beneficiar da sua ajuda. Políticas cuja implementação era depois por elas acompanhada com verdadeiro fervor inquisitivo, de modo a que o menor desvio à ortodoxia reinante fosse de imediato severamente punido com a suspensão em cadeia da ajuda prestada, não apenas no plano multilateral, mas também no plano puramente bilateral.
Quem quiser acompanhar as “barbaridades” cometidas na execução da doutrina saída do Consenso de Washington pode lê-las em Joseph Stiglitz, tanto em “Globalization and its Discontents” como em “Making Globalization Work” (ambos com tradução portuguesa), nos quais descreve situações que, se não fossem trágicas pelos seus efeitos, serviriam para marcar pelo ridículo uma época tristemente sujeita ao domínio do pensamento único.
Pois bem, ao abrigo das imposições decorrentes do Consenso de Washington, os países em desenvolvimento e os emergentes eram obrigados a entregar pura e simplesmente a economia às leis do mercado, com completa exclusão do Estado, considerado um travão do desenvolvimento económico (não esquecer, entre nós, os compagnons de route do PS que ainda há menos de seis meses defendiam idênticos pontos de vista para definir o “socialismo moderno”); a liberalizar o mercado de capitais; a privatizar tudo o que pudesse entrar na actividade económica; a reduzir drasticamente os subsídios sociais; as desregulamentar o mercado do trabalho; e a abrir a economia, abatendo todo tipo de barreiras proteccionistas, qualquer que fosse o nível de desenvolvimento do país em questão. Simultaneamente, os Estados eram instados a fortíssimas reduções nos gastos públicos e rigorosamente fiscalizados para que as metas previstas fossem efectivamente alcançadas, sob pena de graves consequências na prestação da ajuda.
Os países emergentes, consoante a sua força e situação económica, ainda conseguiram, com excepção da Rússia de Yeltsin, moderar em algumas áreas a fúria neoliberal das instituições de Bretton Woods, ou, como a China, e, em certa medida a Malásia, resistir vitoriosamente à aplicação do modelo, pelo menos, na sua totalidade, mas os países em desenvolvimento, muito dependentes da ajuda internacional, como era o caso dos da África subsaariana, ficaram completamente à mercê daquelas instituições.
O fortíssimo ataque desencadeado contra tudo o que era Estado, por via da drástica redução das despesas públicas, dirigido contra países recém-saídos do colonialismo, com instituições frágeis, em processo de formação e consolidação iria ter consequências devastadoras em vários domínios: ensino, saúde pública, ambiente, segurança, justiça, etc. Certamente que nem tudo o que existia nos países em desenvolvimento, nos começos de 90, era recomendável ou sequer defensável, mas entre as reformas e os melhoramentos que se impunham e o tratamento de choque a que esses países foram submetidos vai a diferença que separa o êxito do desaire ou até da catástrofe.
Passou muito tempo e foi preciso assistir ao completo fracasso de muitos programas de desenvolvimento antes que os guardiões da ortodoxia se tivessem dado conta das ”barbaridades” (não há outro nome) que estavam a cometer. Os efeitos da fragilização do Estado começaram a manifestar-se em vários domínios, alguns dos quais em áreas que contendiam directamente com a própria segurança dos Estados que a tinham advogado e imposto. Por outro lado, constatou-se também que o enfraquecimento do Estado e a fragilização das instituições constituíam um grave obstáculo ao êxito de qualquer política de desenvolvimento.
Foi então que algumas campainhas de alarme soaram. Aqueles, como Fukuyama, que antes tinham pregado o fim da História, o progressivo enfraquecimento do Estado e a diminuição das despesas públicas, foram os mesmos que década e meia mais tarde, tentando manter intacto o “dogma” neoliberal, vieram defender a distinção, no âmbito da actividade do Estado, entre as funções que o Estado “deveria ter” das que “não deve ter”. As primeiras, que não poderiam ser restringidas, nem menosprezadas, deveriam ser exercidas com eficácia. As demais eram contraproducentes e não deveriam ficar a cargo do Estado.
Entre as funções que o Estado “não deve ter” nem ocupar-se contam-se as que tenham a ver com a redistribuição da riqueza ou com qualquer espécie de actividade económica; entre as que o Estado “poderá ter”, sendo, porém, conveniente que se comprometa o menos possível, estão certas actividades sociais. Entre as funções que o Estado “não pode deixar de ter” e, consequentemente, desempenhar com a máxima eficácia contam-se: a defesa dos direitos de propriedade, a justiça, a segurança, a gestão macroeconómica, a saúde pública (não confundir com qualquer tipo de serviço nacional de saúde), o apoio às vítimas de catástrofes e os programas de auxílio à pobreza.
O Banco Mundial, referindo-se a alguns destes aspectos, que constituem o conteúdo do Estado mínimo, e tendo compreendido muito tardiamente o papel das instituições nos processos de desenvolvimento, fala abertamente na “construção de instituições para o mercado”.
Se bem repararmos, há mais semelhança do que se supõe entre esta nova forma de encarar o Estado por parte do neoliberalismo (mesmo antes do desencadeamento da actual crise) e a chamada “social-democracia europeia dos países periféricos”, como o nosso.
O governo socialista (não se fala do PSD, por razões óbvias) e os seus ideólogos, filiados ou não, mas cada vez em lugares de maior destaque, também não defendem qualquer papel do Estado na economia, nem na redistribuição da riqueza. Por isso, a fúria privatizadora do governo vai continuar, mesmo contra o interesse nacional (como será o caso da ANA, que mais tarde aqui iremos aqui abordar), como vai continuar uma política económica completamente orientada para a concentração da riqueza, assente na convicção que essa é uma das vias para alcançar a competitividade das empresas.
E os que pretendem negar esta evidência cantando loas aos programas do Governo de auxílio à pobreza, identificando neles a matriz social-democrata do Governo, esquecem-se na sua arrogância ou contando com a ignorância dos outros, que esse é um dos elementos mais marcantes da matriz do Estado neoliberal. Aliás, é natural que um Estado que gera pobres, que segrega pobres em grande quantidade, careça de pôr em prática algumas medidas mínimas para atenuar a situação.