FACTOS SÃO FACTOS
Nem sempre estive de acordo com os “critérios jornalísticos” de Joaquim Furtado na I série do documentário “A Guerra”, de nove episódios, entre 1961-64, embora reconheça que se tratou de um trabalho interessante que deu a conhecer ao grande público, principalmente ao que não viveu a Guerra Colonial, factos e contextos que lhe eram desconhecidos.
Esta segunda série, ontem iniciada, de onze episódios, entre 1964-67, vai incidir sobre o fim do salazarismo e sobre uma fase da guerra que o regime já não conseguia fazer passar por vitoriosa, como aconteceu nos três primeiros anos (em que se chegou a falar de simples acções de polícia…). É também durante este período, posterior à morte de Kennedy, que se atenua ligeiramente a pressão dos americanos sobre o regime, politicamente absorvidos pela guerra do Vietname e simultaneamente se agrava o seu isolamento internacional em relação ao então chamado “terceiro mundo”. Na Europa Ocidental, a posição das democracias oscila entre o apoio a Portugal, disfarçado de abstenção (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Bélgica, Itália) e a hostilidade dos nórdicos que passaram apoiar ostensivamente a guerrilha, embora sem fornecimento de material militar, a cargo da União Soviética e demais países socialistas.
A série que ontem se iniciou começa com dois depoimentos, muito interessantes, destinados a situar o telespectador, desde o início, no ambiente de guerra e só depois tem lugar o genérico. Através deles pretende-se que o telespectador perceba que as regras que regem a conduta humana em guerra são diferentes das que regem essa mesma conduta em tempo de paz. Não se está a falar de qualquer atropelo à legalidade internacional, ou sequer à moral, mas pura e simplesmente a dizer-se que a guerra tem as suas leis.
Os demais depoimentos são, em geral interessantes, embora prestados por pessoas que já participaram na primeira série. Há, porém, dois aspectos que não podem passar em claro: um diz respeito ao assassinato de Humberto Delgado, outro à posição da oposição sobre a guerra e o colonialismo.
Sobre o primeiro, não compreendo que interesse pode ter pôr a circular, ainda por cima sem contraditório, a versão do autor material do crime. De facto, é inadmissível, insinuar que houve uma espécie de excesso de legítima defesa, não somente por hoje haver fundadas razões para crer que Casimiro Monteiro, assassino profissional, foi admitido na pide para assassinar Humberto Delgado, mas também por se saber que a brigada Rosa Casaco levava por incumbência aquele assassinato.
Sobre a segunda questão, é certo que a Oposição Democrática se manifestou contra o colonialismo e a guerra nos termos que constam do documento lido por Mário Soares, mas também é verdade que já muito antes o PCP tinha tratado o assunto, pela primeira vez, no III Congresso, 1943, salvo o erro, no capítulo “Aliança com os povos coloniais” (“não é livre um povo que oprime outros povos”); no IV Congresso, 1946, no qual acusa a ditadura de exploração colonial, escravatura, saque das pequenas explorações indígenas, castigos corporais, difusão do ódio racial; no V Congresso, em 1957, em que advoga “o reconhecimento incondicional do direito dos povos das colónias dominadas por Portugal à imediata e completa independência”; e, finalmente, no VI Congresso em 1965, no qual, entre os oito objectivos fundamentais da revolução antifascista, figurava: “reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência”, com soluções diferenciadas para Macau (integração na China) e Timor (autodeterminação e independência).
É verdade que o tema Ultramar não era unanimemente entendido pela Oposição e que a mais tradicional, herdeira da I República, continuava a ter muita dificuldade na aceitação da autodeterminação e independência das colónias. O próprio General Humberto Delgado, como se diz na série, manifestava reservas à independência; porém, com o tempo e principalmente o contacto no exílio com nacionalistas africanos – e isto não se diz na série – a sua posição mudou.
Nem sempre estive de acordo com os “critérios jornalísticos” de Joaquim Furtado na I série do documentário “A Guerra”, de nove episódios, entre 1961-64, embora reconheça que se tratou de um trabalho interessante que deu a conhecer ao grande público, principalmente ao que não viveu a Guerra Colonial, factos e contextos que lhe eram desconhecidos.
Esta segunda série, ontem iniciada, de onze episódios, entre 1964-67, vai incidir sobre o fim do salazarismo e sobre uma fase da guerra que o regime já não conseguia fazer passar por vitoriosa, como aconteceu nos três primeiros anos (em que se chegou a falar de simples acções de polícia…). É também durante este período, posterior à morte de Kennedy, que se atenua ligeiramente a pressão dos americanos sobre o regime, politicamente absorvidos pela guerra do Vietname e simultaneamente se agrava o seu isolamento internacional em relação ao então chamado “terceiro mundo”. Na Europa Ocidental, a posição das democracias oscila entre o apoio a Portugal, disfarçado de abstenção (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Bélgica, Itália) e a hostilidade dos nórdicos que passaram apoiar ostensivamente a guerrilha, embora sem fornecimento de material militar, a cargo da União Soviética e demais países socialistas.
A série que ontem se iniciou começa com dois depoimentos, muito interessantes, destinados a situar o telespectador, desde o início, no ambiente de guerra e só depois tem lugar o genérico. Através deles pretende-se que o telespectador perceba que as regras que regem a conduta humana em guerra são diferentes das que regem essa mesma conduta em tempo de paz. Não se está a falar de qualquer atropelo à legalidade internacional, ou sequer à moral, mas pura e simplesmente a dizer-se que a guerra tem as suas leis.
Os demais depoimentos são, em geral interessantes, embora prestados por pessoas que já participaram na primeira série. Há, porém, dois aspectos que não podem passar em claro: um diz respeito ao assassinato de Humberto Delgado, outro à posição da oposição sobre a guerra e o colonialismo.
Sobre o primeiro, não compreendo que interesse pode ter pôr a circular, ainda por cima sem contraditório, a versão do autor material do crime. De facto, é inadmissível, insinuar que houve uma espécie de excesso de legítima defesa, não somente por hoje haver fundadas razões para crer que Casimiro Monteiro, assassino profissional, foi admitido na pide para assassinar Humberto Delgado, mas também por se saber que a brigada Rosa Casaco levava por incumbência aquele assassinato.
Sobre a segunda questão, é certo que a Oposição Democrática se manifestou contra o colonialismo e a guerra nos termos que constam do documento lido por Mário Soares, mas também é verdade que já muito antes o PCP tinha tratado o assunto, pela primeira vez, no III Congresso, 1943, salvo o erro, no capítulo “Aliança com os povos coloniais” (“não é livre um povo que oprime outros povos”); no IV Congresso, 1946, no qual acusa a ditadura de exploração colonial, escravatura, saque das pequenas explorações indígenas, castigos corporais, difusão do ódio racial; no V Congresso, em 1957, em que advoga “o reconhecimento incondicional do direito dos povos das colónias dominadas por Portugal à imediata e completa independência”; e, finalmente, no VI Congresso em 1965, no qual, entre os oito objectivos fundamentais da revolução antifascista, figurava: “reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência”, com soluções diferenciadas para Macau (integração na China) e Timor (autodeterminação e independência).
É verdade que o tema Ultramar não era unanimemente entendido pela Oposição e que a mais tradicional, herdeira da I República, continuava a ter muita dificuldade na aceitação da autodeterminação e independência das colónias. O próprio General Humberto Delgado, como se diz na série, manifestava reservas à independência; porém, com o tempo e principalmente o contacto no exílio com nacionalistas africanos – e isto não se diz na série – a sua posição mudou.
É, porém, minha convicção, não obstante todas as manifestações acima referidas, que somente a partir do fim da década de 60, e inequivocamente nos primeiros anos de 70, passou a haver um forte sentimento anti-colonial entre os portugueses, cansados de uma guerra sem fim à vista. Sentimento que se manifestava mais intensamente entre os mobilizados para a guerra colonial e suas famílias, e que acabou por influenciar decisivamente os próprios oficiais de carreira, nomeadamente os mais jóvens, sujeitos a sucessivas comissões de serviço no teatro das operações.
2 comentários:
No mesmo sentido, sobre a posição clara de luta anticolonial do PCP, queria lembrar dois factos de que tive experiência directa, como tu também.
1. na segunda metade dos anos 60, o movimento associativo, então muito influenciado pelo PCP, assumiu uma clara posição anticolonialista, não só, a nível diário, na propaganda nas associações, na música que se passava, nos espectáculos, nos cineclubes, etc. (pode parecer hoje que não é nada, mas foi o que puderam fazer muitos que, pelo menos, deviam hoje merecer algum respeito) mas principalmente no apoio aos presos estudantes africanos (vide Casa dos Estudantes do Império) ou as manifestações da Duque de Loulé (embaixada americana) contra a guerra do Vietnam, obviamente uma evocação da guerra colonial. Há tempos, ouvi Mariano Gago invocar para a sua geração associativa pós-70 a iniciativa da posição anticolonial. Como a vaidade torce a história.
2. como se diz no episódio de ontem, e com todo o respeito pelos que optaram ou se viram forçados a desertar para o estrangeiro, a palavra de ordem do PCP de se ir para a guerra e lutar politicamente foi essencial para a consciencialização política e motivação dos capitães no mato pelos oficiais milicianos do movimento associativo. E que se fez muita acção política não haja dúvidas, com perigo obviamente superior ao que estávamos habituados cá. Lá a Pide estava mesmo nos quartéis e lidar com um oficial educado militarmente não era coisa de brincadeira.
Declaração de interesses: não tenho nada a ver com o PCP, discordo radicalmente da sua visão política, mas quero ser justo e isento.
Concordo totalmente e foi muito inspirado pela nossa conversa de há dias que escrevi o post. Sim, factos são factos e a gente deve lutar para que não sejam distorcidos nem omitidos...por amor à verdade.
É que nos dias de hoje a verdade tende a ser algo convencional...
JMCPinto
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