quinta-feira, 27 de novembro de 2008

NOTAS SOBRE O CONCEITO DE DITADURA - PARTE II



AINDA A PROPÓSITO DAS DECLARAÇÕES DE MANUELA FERREIRA LEITE (CONT.)


EU NÃO ACREDITO EM REFORMAS, QUANDO SE ESTÁ EM DEMOCRACIA…QUANDO NÃO SE ESTÁ EM DEMOCRACIA É OUTRA CONVERSA, EU DIGO COMO É QUE É E FAZ-SE. E ATÉ NEM SEI SE A CERTA ALTURA NÃO É BOM HAVER SEIS MESES SEM DEMOCRACIA, METE-SE TUDO NA ORDEM E DEPOIS ENTÃO VENHA A DEMOCRACIA”.

2- A carga pejorativa incidente sobre o conceito de democracia, implícita no discurso de Ferreira Leite, quando deixa dito que a ”ordem” se restabelece sem a democracia e subentendido que a “desordem” é uma situação normal em democracia, é muito, muito antiga e das mais ancestralmente arreigadas nas convicções populares.
Basta dizer que já Heródoto, no século V ac, num texto que ficou célebre, Livro III das Histórias, sobre a melhor forma de governo a adoptar na Pérsia, por morte de Cambises, pôs três persa a dissertar sobre qual das três formas de governo deveria ser adoptada: o governo de muitos; o governo de alguns; ou governo de um só.
Otanes, que foi o primeiro a falar, defendeu o governo do povo, elogiando todas as suas virtudes: antes de mais, a isonomia (em linguagem moderna, a lei igual para todos); depois, a distribuição à sorte dos cargos públicos; em terceiro lugar, a obrigação de os representantes do povo prestarem contas do exercício do poder; e, por fim, todas as decisões estarem sujeitas ao voto popular.
Megabises, que falou em segundo lugar, manifestou-se completamente contrário ao governo popular: “ A massa inepta é obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se deve tolerar que, para escapar da prepotência de um tirano, se caia sob a da plebe desatinada. Tudo o que o tirano faz, fá-lo conscientemente, mas o povo nem tem sequer a possibilidade de saber o que faz (…)".
Dario falou em terceiro lugar e concordou com Megabises sobre tudo o que este disse contra o governo popular. Porém, acrescentou: “Quando é o povo que governa, é impossível não haver corrupção na esfera dos negócios públicos, a qual não provoca inimizades, mas sim sólidas amizades entre os malfeitores: os que agem contra o bem comum fazem-no conspirando entre si. É o que acontece até que alguém assuma a defesa do povo e ponha fim às suas tramas (…)".
É claro que esta discussão, que Heródoto situa ficticiamente na Pérsia, deixa-nos perceber o grau de desenvolvimento que o pensamento político grego já tinha atingido um século antes das famosas teorizações de Platão e Aristóteles sobre o mesmo tema, que também não foram muito favoráveis à democracia. Platão, que viveu a época da decadência da democracia ateniense e que, talvez também por isso, perfilhava uma concepção pessimista da história, considerava, na República, a democracia uma das quatro formas corruptas de governo por referência à república ideal que defendia, embora no Político a considere a pior das boas e a melhor das más. E Aristóteles, numa classificação que ficou célebre, fundada na aplicação simultânea de dois critérios: “quem governa” e “como governa”, usou o termo democracia para significar o mau governo de muitos e o termo genérico de politeia para caracterizar a forma boa do governo de muitos, embora numa formulação que parece resultar de uma fusão de oligarquia com democracia tendente a, como diríamos hoje, a fomentar o aparecimento de uma forte e numerosa classe média, âncora segura da estabilidade governativa.
A verdade é que, não obstante a “politeia” se aproximar de um governo ideal, o próprio Aristóteles reconheceu que esta forma de governo estava intimamente associada a pequenas comunidades, territoriais e demográficas, o que sempre impediu que ela se aplicasse a Estados de outra dimensão. A ideia de que a democracia estava directamente associada à dimensão das comunidades foi uma ideia que prevaleceu durante muitos séculos sem contestação.
Quase dois milénios mais tarde, Montesquieu dirá que “Num Estado livre, onde em cada homem é suposto possuir uma alma livre e, portanto, governar-se a si mesmo, seria necessário que o povo, como corpo, desempenhasse o poder legislativo. Mas como isto é impossível nos grandes Estados e sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, é necessário que o povo faça por intermédio dos seus representantes tudo o que não pode fazer por si mesmo”. Embora Montesquieu abrisse a porta a uma democracia de outro tipo, diferente da dos antigos, a verdade é que aquela objecção (a de a democracia estar ligada a pequenas comunidades) prevaleceu em larga escala aquando da formação dos modernos Estados territoriais, que viram noutras formas de governo, nomeadamente na monarquia, a forma normal de organização política.
O próprio Rousseau chegou a afirmar que a verdadeira democracia jamais existiria, uma vez que ela exigiria, entre outras condições, um Estado muito pequeno “no qual ao povo seja fácil reunir-se e cada cidadão possa conhecer todos os demais”. Muito ligado ao conceito de democracia directa, Rousseau nega categoricamente que o ideal de democracia possa ser alcançado através da eleição periódica dos representantes parlamentares ou da eleição periódica do governo. Diz Rousseau. “Toda a lei que o povo não aprovou pessoalmente é nula; não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre; mas engana-se redondamente; ele não o é senão durante a eleição dos membros do parlamento; assim que estes são eleitos, ele vive novamente em escravidão; não é nada”.
E, enquanto na Europa se exaltava a monarquia constitucional como única forma de governo “Em que se poderia reconhecer o espírito do mundo após a Revolução Francesa” (Hegel), do outro lado do Atlântico, um novo grande Estado, governado sob a forma de república, começava a consolidar-se – os Estados Unidos da América. Os fundadores deste novo Estado não confundiam a república por eles instituída com a democracia dos antigos. Para eles a república era a democracia representativa, na qual, diz Madison, “há uma delegação da acção governativa num pequeno número de cidadãos eleitos pelos outros”, daí resultando poder ela “ampliar a sua influência sobre um maior número de cidadãos e sobre uma maior extensão territorial”. E é do sucesso desta experiência americana que se generaliza a convicção de que o tal elo entre democracia e dimensão do território pode ser superado pela via da democracia representativa, como forma não autocrática de governo compatível com um território vasto e uma população numerosa.
Anos mais tarde, Tocqueville esforça-se por demonstrar, nas condições então vividas na América, a irrelevância da distinção entre democracia directa e democracia representativa. Em Da Democracia na América diz: “ Às vezes é o próprio povo que faz as leis, como em Atenas; às vezes são os deputados, eleitos por sufrágio universal, que o representam e agem em seu nome, sob a sua vigilância quase directa”. O que realmente importa é que o poder esteja de facto, directamente ou por interposta pessoa, nas mãos do povo, que a soberania popular vigore como a “lei das leis”, que a “sociedade aja por si sobre si mesma” e “não exista poder fora dela e ninguém ouse conceber, e sobretudo exprimir, a ideia de buscá-lo noutro lugar”. Esta completa identificação entre o poder popular e a democracia representativa, tal como Tocqueville a concebia na América, está bem patente nesta afirmação: “O povo reina sobre o mundo político americano, como Deus sobre o universo. Ele é a causa e o fim de tudo: tudo deriva dele e para ele é reconduzido”.
Esta matriz da democracia americana - a sua maior proximidade à ideia base da democracia directa, de um controlo popular (ou dos grupos) intenso e permanente sobre os eleitos, que aproxima o mandato representativo do mandato imperativo – continua ainda hoje presente, embora sob formas muito mais atenuadas, e distingue-a da democracia europeia, principalmente da existente na Europa continental, onde a eleição dos representantes, em listas fechadas, incide sempre sobre nomes escolhidos pelas cúpulas partidárias, sem qualquer possibilidade de outros representantes, que não os escolhidos pelos partidos, serem eleitos. Este processo de escolha dos representantes parlamentares torna o mandato representativo praticamente incondicionado e faz com que entre eles e o eleitorado que os elege não haja qualquer vínculo ou ligação. Na verdade, os representantes respondem perante o partido, do qual dimanam, e não perante o povo, e se querem voltar a ser eleitos ou passar a figurar nas próximas listas eleitorais têm de se manter nas boas graças do aparelho partidário, sem o qual nada se consegue, perdendo toda a sua liberdade e autonomia.
Este procedimento, hoje corrente, arrasta uma consequência muito mais grave: como os representantes parlamentares são escolhidos pelas cúpulas partidárias que, em caso de vitória eleitoral, tendem a ir para o governo, acaba por ser o governo a controlar o parlamento, mais correctamente, a maioria parlamentar que o apoia e não o contrário, como seria normal em democracia.
Associado a estas novas formas de democracia temos desde a primeira hora a consagração dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, cuja extensão e defesa, principalmente em épocas de crise, são muitas vezes postos em causa pelos adversários da democracia, sempre com o velho argumento de que o “excesso de garantias” inviabiliza ou torna muito precária a defesa dos demais cidadãos ou do próprio Estado (Guantánamo, Abu Ghraib, admissibilidade de formas de tortura, etc.).
Tudo isto para dizer que a democracia como forma de governo, quer a directa, quer a representativa, apesar do indiscutível progresso civilizacional que representa, tem historicamente, pelas várias razões acima apontadas, uma carga pejorativa que, no mínimo, impede o seu reconhecimento sem reservas. Ferreira Leite, com as suas palavras, mais não fez do que, inconscientemente, exprimir este sentimento.

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