quinta-feira, 27 de novembro de 2008

NOTAS SOBRE O CONCEITO DE DITADURA - PARTE III



AINDA A PROPÓSITO DAS DECLARAÇÕES DE MANUELA FERREIRA LEITE (CONT.)


“EU NÃO ACREDITO EM REFORMAS, QUANDO SE ESTÁ EM DEMOCRACIA…QUANDO NÃO SE ESTÁ EM DEMOCRACIA É OUTRA CONVERSA, EU DIGO COMO É QUE É E FAZ-SE. E ATÉ NEM SEI SE A CERTA ALTURA NÃO É BOM HAVER SEIS MESES SEM DEMOCRACIA, METE-SE TUDO NA ORDEM E DEPOIS ENTÃO VENHA A DEMOCRACIA”.
3 – Finalmente, temos a ditadura como instituição adequada para acudir a situações excepcionais: ”Eu digo como é que é e faz-se…E até nem sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem…”. Dictator est qui dictat.
Pulido Valente numa das suas intervenções de fim-de-semana já nos explicou que esta é uma ideia que vem da monarquia constitucional: o Rei dissolvia o Parlamento, o governo continuava a governar por decreto, mais tarde elegia-se novo Parlamento que, por via do bill de indemnidade, ratificava ou convalidava os decretos aprovados. Era a chamada"ditadura administrativa”. Acontece que esta prática (leiam-se os famosos discursos de Passos Manuel nas Cortes) que os alunos de direito conhecem desde o primeiro ano, a propósito da génese dos decretos-leis em Portugal, é muito mais antiga que a Monarquia Constitucional. É uma prática que vem de Roma, da República Romana, que consagrava a ditadura como magistratura legítima, posto que extraordinária, para a acudir a situações excepcionais, como uma guerra ou uma rebelião.
Esta magistratura extraordinária, instituída cerca de 500 ac e que terá perdurado até finais do século III ac, prestou grandes serviços à República e continuou pelos séculos fora a ser enaltecida com as características que tinha em Roma.
O ditador era nomeado por um dos cônsules a pedido do senado e a sua nomeação tinha em vista constituir, em tempos de perigo, um poder forte que não pudesse ser obstaculizado ou dificultado pela colegialidade da decisão, pelo direito de veto ou por qualquer outro procedimento impeditivo de uma decisão célere. O ditador recebia um mandato, como hoje se diria, para realizar uma determinada tarefa ou alcançar um resultado, executado o qual findava a sua missão que, em qualquer caso, nunca poderia ir além dos seis meses (cá estão os seis meses de MFL!!!) ou exceder o mandato do cônsul que o nomeara. A ditadura romana era, portanto, uma instituição legítima – estava prevista na constituição; excepcional – os demais poderes eram suspensos; monocrática – o ditador é sempre individual; e temporária – termina com a concretização do objectivo ou o mandato do cônsul, sem, porém, exceder nunca os seis meses.
À época, e posteriormente durante muitos séculos, a ditadura não tinha carácter pejorativo. O facto de ser legítima e limitada no tempo permitia facilmente distingui-la de dois conceitos clássicos, esses sim negativos, hoje praticamente caídos em desuso: a tirania e o despotismo.
O tirano é o que exerce o poder sem título ou que, tendo título, governa sem obediência às leis. A tirania é, portanto, como a ditadura, monocrática, mas não é legítima, nem necessariamente temporária.
O déspota, na concepção clássica do conceito, que prevaleceu até à teorização de Montesquieu, é aquele que exerce o seu poder no interesse próprio sobre povos naturalmente servis. Trata-se de um poder monocrático, permanente, mas legítimo, porque aceite pelos súbditos. Na concepção clássica aristotélica, o despotismo, como forma de governo, estava geograficamente delimitado - Ásia -, ideia que persiste em Montesquieu, não obstante as inovações que este introduziu no conceito. Para Montesquieu, o despotismo sem deixar de estar histórica e geograficamente delimitado, é uma forma autónoma de governo, distinta da monarquia e da república, baseada no medo, na vontade incontrolável do déspota, sem leis nem freios. A China do seu tempo é, para Montesquieu, o exemplo típico de despotismo, enquanto para Aristóteles era a Pérsia.
O despotismo terá mais tarde uma formulação positiva - o despotismo iluminado - , que fará do déspota o intérprete e aplicador das leis naturais e universais, cuja aplicação assegura ao homem a felicidade e a prosperidade.
A concepção positiva da ditadura prevalece ao longo dos tempos e é defendida pelos mais ilustres pensadores políticos ocidentais. Maquiavel, nos Discorsi, diz que a “instituição da ditadura faz bem, e não mal, à república romana; o que causa dano à vida política é o poder usurpado, não o que é livremente delegado”. Maquiavel não concorda, portanto, com a tese que responsabiliza a ditadura romana pela tirania que recaiu sobre a república, primeiramente com Sila e depois com César. Segundo ele, não foi a ditadura que facilitou a tirania, mas a usurpação do poder por quem se encontrava no governo. Se aquele título não existisse, o usurpador criaria outro: ”a força encontra facilmente um título, mas nenhum título cria a força”.
Também Jean Bodin, o grande teórico da soberania, elogia a ditadura romana e serve-se do ditador romano para fazer a distinção entre poder soberano, baseado na perpetuidade, do não soberano. O ditador romano, enquanto magistrado temporário, não era detentor de um poder soberano, cuja titularidade permanecia nos que o nomeavam. Também para Bodin, Sila é um tirano e não um ditador, e igualmente concorda com Maquiavel quando circunscreve a acção do ditador ao âmbito da função executiva.
Mais tarde, J.J. Rousseau, que dedicou no Contrato Social um capítulo à ditadura, admite que o poder sagrado das leis possa ser silenciado se isso for necessário à salvação da pátria, confiando-se, nestes raros casos, ao mais digno a missão de velar pela segurança pública. Rousseau insiste no carácter excepcional e temporário da ditadura e na sua natureza executiva: o ditador pode silenciar as leis, mas não as pode fazer falar: “o magistrado que a emudeceu (a autoridade legislativa) não pode restituir-lhe a voz (…) Tudo lhe é permitido excepto as leis”.
Carl Schmitt, o grande estudioso da ditadura, chama à ditadura tradicional, ou seja, à que temos vindo a tratar, “ditadura comissária” para a distinguir de uma outra forma muito diferente, que faz o seu aparecimento com a Revolução Francesa, a que chama “ditadura soberana” e que se prolonga até hoje.
A ditadura comissária ou delegada limita-se a suspender a constituição para a defender, enquanto a ditadura soberana “vê em toda a ordenação política existente um estado de coisas que quer eliminar com a sua acção”. Contrariamente, à ditadura comissária, ela não suspende a constituição baseada num direito constitucional, mas aspira a criar uma situação que torne possível uma nova constituição, que considera como a constituição verdadeira. A ditadura soberana não apela a uma constituição existente como fonte de legitimidade, mas à legitimidade que decorrerá do poder constituinte ao abrigo do qual a nova constituição vai ser implantada. Assim, o ditador comissário é o comissário de uma acção incondicionada de um poder constituído, enquanto o ditador soberano é o comissário de uma acção incondicionada de um poder constituinte. Dito mais simplesmente, o ditador comissário é constituído; o soberano, constituinte.
O exemplo de ditadura soberana que Schmitt apresenta é o da suspensão da Constituição de 1793 pela Convenção Nacional. A Convenção, órgão extraordinário do poder constituinte, foi encarregada de redigir uma constituição, que depois foi aprovada pelo povo em plebiscito. Com a redacção da constituição cessou o seu mandato, todavia, “devido à situação de guerra e ao movimento contra-revolucionário do interior que ameaçavam a nova constituição, a Convenção decidiu, em 10 de Outubro de 1793, que o governo provisório de França fosse revolucionário até que a paz se alcançasse”. Em consequência, foi suspensa a Constituição, que não mais voltou a entrar em vigor.
Schmitt considera soberana esta ditadura, visto a Convenção, com o cumprimento da tarefa de que estava encarregada, ter deixado de ser um órgão constituído; por outro lado, nem no mandato de redacção da constituição, nem na própria Constituição se admitia a sua suspensão, e tão-pouco existia qualquer outro órgão constituído que a pudesse decretar . A Convenção actuou fazendo apelo ao pouvoir constituant do povo e afirmando simultaneamente que este estava impossibilitado de o exercer em virtude da guerra e da contra-revolução.
Apesar das diferenças, existe alguma continuidade ente a ditadura comissária e a soberana, desde logo a excepcionalidade e o carácter temporário, aliás interligados, já que toda a situação excepcional é, por definição, temporária. O que as distingue, sem prejuízo do carácter temporário não ser respeitado, é a perda da natureza monocrática: a ditadura jacobina já não é a ditadura de uma pessoa, apesar do peso de Robespierre, mas de um grupo revolucionário, o Comité de Salvação Pública e a extensão dos poderes ditatoriais.
A perda de duas características fundamentais da ditadura clássica na transição da ditadura comissária para a ditadura soberana – o carácter monocrático do poder e a extensão dos poderes ditatoriais – é que vai fazer com que o conceito jamais possa ser entendido no sentido positivo com que foi instituído em Roma. De facto, a perda do carácter monocrático permitiu que o marxismo passasse o usar o conceito de ditadura para expressar o domínio de uma classe sobre outra: ditadura do proletariado e ditadura da burguesia. E a perda da natureza executiva da ditadura, circunscrita à execução de um mandato limitado no tempo, a favor da natureza legislativa, que se permite aprovar leis, inclusive constitucionais, e abolir, e não apenas suspender, garantias constitucionais, acabou por alterar definitivamente o sentido do conceito.
Se do ponto de vista teórico nenhuma dúvida pode existir na distinção entre a ditadura clássica, que é uma ditadura constitucional e constituída, e a ditadura moderna, que é extra constitucional e constituinte, do ponto de vista prático podem, por vezes, suscitar-se dúvidas, porque os novos ditadores tendem a associar à ditadura que institucionalizam certas características da ditadura clássica para a legitimar. É o que se passa quando se invoca a natureza excepcional da situação que a impõe e a natureza transitória do poder que se vai passar a exercer. Esta justificação ocorre frequentemente naqueles casos em que a seguir a uma insurreição armada, sempre justificada pela existência de uma situação excepcional, se instaura uma ditadura para preparar a nova ordem constitucional que o povo aprovará no exercício do seu poder constituinte. Mas não haja ilusões, trata-se apenas de invocações que têm em vista uma finalidade legitimadora, que a prática e o tempo se encarregam de desmentir. Recorde-se o que se passou entre nós, com o 28 de Maio de 1926, nomeadamente depois da chegada de Salazar ao governo. Por isso, a ditadura moderna não é mais uma instituição legítima, mas uma forma de governo dos tempos modernos a que classicamente se chamaria tirania, quer por se tratar de um poder exercido sem título legítimo, quer por se tratar da apropriação de um poder maior do que aquele que constitucionalmente foi confiado.
Daí a gravidade das palavras pronunciadas…

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