domingo, 7 de junho de 2009

AINDA O DISCURSO DO CAIRO


UMA BREVE NOTA

Não tendo feito, na altura própria, o comentário que o evento justificava, aqui fica uma brevíssima nota sobre a importância do discurso de Obama.
O que o discurso tem de verdadeiramente inovador na política americana desde Reagan, talvez mesmo desde Carter (deixando sempre um hiato para Bush pai, um político realista da velha escola) é a afirmação, sob a forma de princípio, de que a crença nos nossos valores e a convicção com que os defendemos não nos atribui o direito de os impormos aos outros. Traduzindo: a democracia não se exporta. “So let me be clear: no system of government can or should be imposed upon one nation by any other”.
O quarto tema do discurso de Obama, a Democracia, rompe com um dogma do pensamento neoconservador que influenciou decisivamente a política americana nestes últimos trinta anos. Ou seja, que a natureza interna dos regimes influencia o seu comportamento externo e que o poder (americano) deve ser usado para fins morais. Por outras palavras, as sociedades liberais democratas têm o dever de lutar pela mudança dos regimes que não defendem os mesmos valores e devem colocar esse objectivo como uma prioridade da sua política externa, tanto mais que o direito internacional se revelou demasiado fraco para garantir a segurança colectiva.
Esta negação da legitimidade do direito internacional, logo do multilateralismo, a afirmação do papel quase messiânico atribuído ao poder americano na busca do bem geral e a imposição do direito de lutar pela mudança dos regimes que se fundamentam em princípios diferentes dos das sociedades liberais democratas – ou seja, o travejamento basilar do pensamento neoconservador em política externa foi inquestionavelmente posto em causa pelo discurso do Cairo. Verdadeiramente, houve uma ruptura. Veremos se a prática política americana vai estar à altura do significado profundo deste discurso. Veremos também como reagirá, principalmente nas universidades, a grande intelectualidade americana a esta revolução coperniciana da política externa.
Evidentemente, que o pensamento neoconservador estava muito longe de recolher a unanimidade do pensamento político americano, principalmente depois do desgaste que a prática de George Bush lhe causou. Todavia, engana-se quem pensar que há uma parte significativa da intelectualidade americana (e, obviamente, da própria sociedade) imune à influência do pensamento neoconservador. Isso não se passa na América, nem tão-pouco se passa em alguma esquerda europeia, cujas raízes ideológicas não andam, de resto, muito longe da génese ideológica do neoconservadorismo americano.

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