segunda-feira, 15 de junho de 2009

AS ELEIÇÕES NO IRÃO E A REACÇÃO OCIDENTAL


UMA VITÓRIA INDESEJADA

É muito difícil escrever sobre as eleições no Irão. A informação não é muita e muita dela é deturpada. Se for para negar a legitimidade da vitória da Ahmadinejad não faltará quem aplauda, seja boa ou má a informação que a sustenta. Se, pelo contrário, for para fazer uma análise tanto quanto possível objectiva não faltará quem a ataque e tenda a ver nela o que realmente se não disse.
Ahmadinejad ganhou e Musavi perdeu. Segundo os resultados oficiais, dois terços dos eleitores votaram no actual presidente e um terço no candidato da oposição. O resultado da eleição não agradou à União Europeia, nem à América e seus aliados mais próximos: Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Israel, Arábia Saudita e Egipto. Mas foi recebido com naturalidade pelos grandes países emergentes, pelos aliados árabes (que não são muitos) e por países da América Latina, como a Venezuela, Bolívia e Cuba.
Musavi não aceitou a derrota e queixa-se de fraudes eleitorais. Fraudes que ninguém consegue provar como fundamento da derrota. Irregularidades, como sempre acontece em todas as eleições, terá havido, mas do que se escreve sobre o assunto parece depreender-se que elas pouco ou nada influenciaram o resultado eleitoral. De qualquer modo, os apoiantes de Musavi, a maior parte deles oriundos das áreas urbanas e, portanto, muito mais abertos a mudanças porventura num sentido mais laico da vida política, puseram nesta eleição uma grande expectativa. A derrota frustrou-os e o apelo de Musavi levou-os à rua, onde protestaram com veemência. Apesar de não se assumirem abertamente como anti-sistema, a verdade é que eles puseram em causa a “ordem pública”, e as autoridades iranianas, à semelhança de todas as autoridades que velam pela manutenção da ordem e do “sistema”, reagiram contra os manifestantes.
Esta reacção desagradou aos ocidentais e a avaliar pela ênfase que nela puseram é de admitir que também eles não tenham argumentos mais fortes para contestar a derrota: foi também uma expectativa, posto que mais ténue, que se frustrou.
A nós não nos agrada nenhum tipo de “democracia religiosa”, qualquer que seja a religião. A política é laica e constitui uma grande conquista da nossa cultura o desligamento da política da religião, apesar de tal princípio ser, do nosso lado, frequentemente contestado seja pelas autoridades religiosas, seja pelas políticas. Não obstante, consegue manter-se o essencial.
Todavia, já é muito mais difícil, para não dizer impossível, tanto na nossa democracia, como na iraniana, aceitar a vitória das teses anti-sistema. A liberdade (aparente) com que tais teses se manifestam pode ser diferente num e noutro lado, mas em ambos os lados o poder ideológico do sistema é tão forte que praticamente diaboliza quem se lhe oponha.
Por exemplo, entre nós, uma subida, importante, ainda que modesta dos partidos de esquerda constituiu motivo de alarme em toda a imprensa bem pensante, nos comentadores “encartados” e em todo o establishment que de Aberto João Jardim a Vital Moreira se preocupou mais com esse facto do propriamente com a votação dos partidos a que pertencem. Mas não se trata apenas das reacções pós-eleitorais. Trata-se antes do clima geral permanente existente nos diversos órgãos veiculadores do poder ideológico do sistema que liga a possibilidade de aqueles partidos poderem constituir uma alternativa de governo a uma hipótese verdadeiramente demencial. É, por isso, infelizmente natural que no Irão se passe o mesmo, apesar de os contestantes terem lá ido bem mais longe eleitoralmente do que foram cá.
São estas mesmas razões que levam a dita imprensa ocidental (leia-se os media, em geral) a negarem a legitimidade de governação de Chavez, de Medvedev, de Evo Morales e por ai fora.
As reacções na administração americana, por agora o que mais interessa, ainda não são muito claras e parece até haver alguma dessintonia entre a prudente declaração de H. Clinton e as ásperas palavras de Joe Biden, posto que matizadas pela necessidade de melhor informação. Mas tudo aponta no sentido de os americanos – os grandes responsáveis pela queda de democracia laica em Teerão – terem de suportar por tempo por agora indefinido a democracia religiosa do Irão. E então se verá se o discurso do Cairo é mesmo para levar a sério…

1 comentário:

Ana Paula Fitas disse...

Caro JMCorreia Pinto,
A clarividência deste texto é notória. Obrigado por colaborar positivamente para a minha auto-justificação sobre o facto de não me sentir em condições para comentar o resultado das eleições iranianas... eu não teria dito melhor o que eu própria penso sobre o problema que a informação/desinformação implica para um adequado "juízo ocidental" sobre os acontecimentos em curso nessa Pérsia longínqua que, como um exemplo para o mundo, denota como nada pode ser dado por adquirido... de outro modo, como justificar a transferência de uma democracia laica em "democracia teocrática"?! Abraço.