CANOTILHO TEME POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA
No Público do dia 8 de Março vem uma pequena, porém, preocupante notícia. A notícia que dá o título a este post.
Diz o jornal: Canotilho teme que os tribunais comecem a politizar a justiça. Foi esta a ideia que defendeu anteontem à noite num colóquio organizado pela Fundação Serralves, no Porto. “Isso mesmo parece estar a anunciar-se pelas próprias orientações da justiça administrativa”, afirmou Gomes Canotilho, que lembrou a contestação pela via judicial de várias políticas públicas na área do ensino e da saúde. Acrescenta ainda o jornal: o constitucionalista alertou para este problema e defendeu que a função do juiz não é esta. “Os juízes não servem para serem órgãos de transformação social”.
No colóquio esteve ainda presente o ex-bastonário dos Advogados, José Miguel Júdice.
Com todas as cautelas decorrentes de uma errada interpretação de quem escreveu a notícia ou da sua involuntária descontextualização, parece-me, mesmo com estas reservas, que ela merece um comentário
A notícia é preocupante por vir de quem vem. Gomes Canotilho é efectivamente um reputado constitucionalista e um homem a quem a democracia e Estado de Direito, no plano teórico, muito devem.
Para quem tem presente a lembrança de 48 anos de “Estado Novo”, que politizou a justiça de acordo com as suas conveniências e transformou os tribunais (uns mais do que outros) em órgãos políticos do Governo, a simples ideia de que se possa estar novamente à beira de uma politização da justiça não deixa de ser preocupante. Permito-me, todavia, duvidar que haja motivo para preocupações nos termos em que foram apresentadas.
Muito sumariamente, nós podemos dizer que há uma politização da justiça ou um risco de politização se:
· Os tribunais invadirem a área de competência do Legislativo;
· Os tribunais invadirem a competência do Governo, nos domínios em que a actuação deste, por ser de natureza exclusivamente política ou baseada em puros critérios de oportunidade, escapa ao controlo e fiscalização dos tribunais.
· Há ainda politização da justiça, quando o Governo controla e condiciona a actuação dos tribunais impedindo-os de funcionar com imparcialidade e independência ou quando o Poder Legislativo adoptar medidas, jurisdicionalmente sancionadas – já veremos por quem –, que ponham igualmente em causa a imparcialidade e a independência dos tribunais.
· Há também politização da justiça quando nem todos possam ter acesso a ela em condições de igualdade, por o Legislativo não criar os mecanismos necessários para assegurar, na prática, a igualdade dos cidadãos perante a lei. E que tem como consequência aquilo a que o Bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto, na sua incisiva linguagem, chama: “Uma justiça forte para com os fracos e fraca para com os fortes”
· Finalmente, haverá politização da justiça quando o órgão supremo sancionador da constitucionalidade das normas – o Tribunal Constitucional – não actuar como um órgão jurisdicional, mas como um órgão político do Governo ou de outra força política, disfarçando a sua conduta através de uma aparente judicialização da sua actuação. A nomeação, para juiz constitucional, de militantes partidários, conhecidos pela sua incondicional fidelidade aos partidos de que provem constitui seguramente um indício muito seguro de que muito provavelmente a justiça será politizada.
Esta situação e a negação, na prática, da igualdade de acesso dos cidadãos à justiça são as duas formas mais ameaçantes da politização da justiça em Portugal, com a agravante de, estando o Tribunal Constitucional politizado, se criarem ipso facto todas as condições para que o Legislativo, quer quando exercido pelo Governo, quer quando exercido pelo Parlamento, politize a justiça.
Não tenho notícia de que as duas primeiras situações acima referidas ocorram em Portugal.
De facto, quem conhece a jurisprudência dos tribunais superiores não encontra exemplos de ingerência do Jurisdicional no Legislativo. Tal ingerência ocorreria se houvesse um desenvolvimento judicial do direito superador da lei susceptível de violar o princípio da separação de poderes. Digamos, em linguagem de blog, que esse desenvolvimento judicial do direito superador da lei só ocorrerá naqueles casos em que, sendo o tribunal chamado a resolver uma questão não prevista na lei, mas que mereça uma resposta jurídica, o faça mediante recurso a considerações não especificamente jurídicas, ou seja, quando a sua decisão for ditada por razões de oportunidade ou quando a tal resposta exigisse uma regulamentação pormenorizada do assunto tratado, regulamentação essa que somente o Legislativo tem competência e legitimidade para levar a cabo. Insisto, não tenho conhecimento de situações destas na jurisprudência portuguesa. Igualmente se desconhecem ingerências do Jurisdicional no domínio exclusivamente político do Legislativo, como aconteceu em Espanha, com as famosas sentenças que obrigam o Parlamento Vasco a dissolver os grupos parlamentares de partidos ilegalizados.
Também não tenho conhecimento de que os tribunais, nomeadamente os administrativos, invadam a competência do Executivo em áreas que lhe estão vedadas como é o caso dos “Actos de Governo” e dos “Actos praticados ao abrigo do poder discricionário”, na parte, cada vez mais reduzida, em que não são jurisdicionalmente sindicáveis. O que os tribunais têm feito, infelizmente apenas alguns tribunais, é verificar se na sua actuação o Governo não viola os princípios estruturantes do Estado de Direito, que obrigam a Administração a uma actuação regida pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, ou se não viola a lei, nomeadamente a constitucional, que proíbe a aplicação de leis ou a interpretação e aplicação de leis que lesem o conteúdo essencial de um direito fundamental ou, ainda, se o Governo se não desvia dos fins em vista dos quais aqueles poderes lhe foram conferidos. Uma actuação mais criteriosa dos tribunais exigiria também uma fiscalização sobre se a solução encontrada pelo Governo é a que melhor serve os interesses do caso concreto. Ou seja, o interesse público e o interesse privado. Os particulares têm o direito de exigir um uso correcto do poder discricionário e um uso correcto é o que atende equitativa e proporcionalmente aos interesses em presença.
Não conheço, repito, exemplos de politização da justiça neste domínio. O que acontece é que o Governo de cada vez que um tribunal suspende ou anula uma decisão sua entra em pânico e começa a clamar contra a politização da justiça. E se esta gritaria não der resultado, então o que lhe ocorre, como acontece com todos os governos arrogantes e com tiques autoritários, é mudar a lei. Se isso viesse a acontecer estaríamos perante um retrocesso democrático de consequências incalculáveis.
A difícil e muito lenta viragem da justiça administrativa tem, em grande medida, a sua origem no Código de Processo Administrativo vigente. Este Código deveria, principalmente num país como Portugal tão falho de vivência democrática, constituir um motivo de orgulho para o Governo que o aprovou ou para o Ministro que o promoveu. É certo que sem António Costa na Justiça muito provavelmente não haveria código, pois não é segredo para ninguém que ele é hoje visto pelo Governo do mesmo partido que então governava como um filho espúrio, concebido por um Governo minoritário, in articulo mortis, já sem capacidade de controlar a agenda parlamentar.
Este Código é no dizer dos seus autores materiais o passo que faltava dar para a constitucionalização da justiça administrativa em Portugal!
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